PRÓLOGO:

A laje, personagem de tantas piadas para uns e endereço de tantos eventos para outros, no documentário “Depois Rola o Mocotó” é a nossa protagonista. Unanimidade em 99% das casas das favelas cariocas a partir da década de 90, hoje, é ícone de uma cultura das periferias das capitais de todo o Brasil.

As favelas parecem brotar do solo das metrópoles do país, como flores que nascem do cimento, insistindo em nascer nos espaços onde aparentemente já não se pode. E, estranhamente, poucas vezes nos perguntamos: Como aquela casa foi parar ali? Como essas casas são construídas? Afinal, quem são esses grandes empreiteiros da cidade, que constroem casas e batem lajes favelas afora, aparentemente à velocidade da luz? Quem são os donos dessas casas e como se organizam para conseguirem mão de obra para a construção?

O BRASIL DO ÚLTIMO ANDAR

Subir é verbo gordo, recheado de muitos sentidos. Pode significar ascensão física, social ou espiritual. Sobe-se para a serra, sobe-se na vida, sobe-se para sair do plano corriqueiro do mundo. Sobem as bolsas, os preços e as marés, assim como elevam-se a voz dos cantores e o espírito dos místicos. No jargão da internet, subir um texto é publicar, trazer à luz. No alto estão a claridade, a aspiração, a conquista e o privilégio.
Fui levado a pensar essas coisas a propósito de dois filmes da Mostra Internacional do Filme Etnográfico. Para seus personagens, a prerrogativa de morar no alto assume um leque curioso de significados. Em Um Lugar ao Sol, oito pessoas/famílias de posses descrevem o que é viver em coberturas do Rio, São Paulo e Recife. Em Depois Rola o Mocotó, número aproximado de personagens exemplificam as muitas funções das lajes numa comunidade pobre como o Complexo do Alemão, no Rio.


Depois Rola o Mocotó “Quem tem laje tem tudo”, diz Dona Vera, que usa uma laje emprestada para lavar e pendurar suas roupas. “Daqui da cobertura, podemos falar com Deus mais facilmente”, informa o morador de uma cobertura carioca. O conforto e a sensação de comunhão com a natureza (o lugar ao sol) são traços comuns aos dois grupos, mas, de resto, a noção de privilégio é vista de modo bem diferente em cada um dos contextos.

No bairro popular, o terraço sobre as casas é local de convivência, já a partir dos mutirões para “bater a laje”, seguidos do banquete de mocotó oferecido pelos donos da casa. O DOC-TV de Debora Herszenhut e Jefferson Oliveira (Don) – este um morador do Complexo – desvenda os diversos usos coletivos da laje: festas, banhos de piscina, cultos religiosos, assistência de jogos na TV, empinação de pipas, vigilância da área por “fogueteiros” do tráfico. Ao mesmo tempo que é propriedade privada, resultado de esforço e conquista, a laje é também um espaço de congraçamento e solidariedade.

Já as coberturas de Um Lugar ao Sol são quase sempre índices de privacidade (mais que isso, isolamento), autosatisfação, esnobismo e arrogância social. Um dos personagens elogia a direção por finalmente fazer um documentário sobre “uma coisa positiva”. Não intuía o quadro geral que o filme acabaria por descortinar: o quadro de uma elite dominada pelo medo e o complexo de superioridade.

É claro que nem todo rico é capaz de provocar repugnância e nem todo pobre é anjo de fraternidade. Um Lugar ao Sol tem personagens mais nuançados, assim como Depois Rola o Mocotó deixa entrever frestas de violência e vaidade. Mas é interessante que esses dois filmes tratem de assunto semelhante em classes sociais bem distintas e apontem o predomínio de sentimentos tão díspares. São duas faces de um desejo de ver as coisas de cima.

Pode-se argumentar que os moradores da favela são vistos com simpatia, enquanto os das coberturas são encarados com uma curiosidade ardilosa. As coberturas, para Gabriel Mascaro, foram um caminho (um dispositivo) para chegar ao pensamento de um estamento social pouco visitado pelos docs. Teria o diretor “traído” seus personagens ao estimular neles a demagogia e o preconceito? Deve-se ter com os ricos a mesma ética que se costuma ter ao filmar os pobres, ou seja, protegê-los de suas próprias palavras? São questões que vêm à cabeça depois de vermos o filme. Há mesmo um momento em que uma senhora parece cair em si a respeito do intuito da entrevista, pede para interrompê-la e sai da sala para não mais voltar.

Ambos os filmes nos confrontam com o desejo de ascensão numa sociedade marcada por desigualdades. Numa sequência de Um Lugar ao Sol, as duas classes se encontram. É quando uma francesa que mora numa cobertura do Rio conta que descobriu o Brasil através do filme Orfeu Negro, de Marcel Camus. Então as cenas do alto do morro, da favela idealizada por Marcel Camus, invadem o filme dos ricos.

Só falta dizer que ambos os docs são de primeira qualidade. Exploram seus temas esteticamente e captam em profundidade sua essência etnográfica. Deviam passar juntos num programa sobre o que seja “subir” no Brasil.

Por Carlos Alberto de Mattos
Publicado: 01/12/2009
Em:
...rastros de carmattos

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