A falta de TV a cabo tem suas conseqüências. O projeto DOCTV, do qual já participei como monitor em sua segunda edição – tive a honra de auxiliar os trabalhos de Mauricio Capoville – é quase sempre formado por filmes que não ultrapassam o pequeno circuito televisivo que o edital prevê. Algumas mudanças estavam sendo previstas, pelo que sei. Mas ainda que apóie muito o projeto, continuo só tendo acesso a seus resultados através de coincidências e sortes. Encontros sem pretensão mas de grande sucesso, como que aconteceu comigo e com Débora Herszenhut.Uma nova diretora na área.
O documentário de 50 e tantos minutos traça um perfil do cotidiano de alguns moradores do complexo do alemão, Rio de Janeiro, tendo como recorte o espaço de convivência da laje. Isso mesmo, o espaço de cima das casas. Olhar interessante. Incomum. Daqueles que passaria desapercebido por muitos que se arriscassem a pensar a respeito de um lugar tão estigmatizado. Pela sensibilidade diferenciada, já chama a atenção. Em um primeiro momento, parecemos estar diante de mais um filme da safra “violência e diferença social nas favelas brasileiras”. Para completar a falta de originalidade, um expectador de véspera (aqueles que já tem opinião antes de ver o filme) ainda completaria: “e não é qualquer favela, para variar é uma favela do Rio de Janeiro”. De fato, esperamos um olhar viciado. O olhar de sempre. Mas onde estão os traficantes? As pessoas reclamando da falta de assistência do estado? Onde estão os personagens e as situações de sempre? Demoramos um pouco a entender que esse não o argumento. Sua câmera não está virada para tudo aquilo que já foi exaustivamente documentado. Está virada para um espaço doméstico que parece ganhar um sentido especial naquele lugar: a laje. E hei que no fim, um filme que parecia repetir os temas de sempre, já ditos tantas vezes em outros títulos, nos traz algo de novo. Mas o que há de especial na laje?
A laje é um espaço de convivência e de acontecimentos. É onde meninos soltam pipas, onde cultos religiosos são realizados de improviso, onde festas e churrascos são feitos. É um símbolo de ascensão social (não necessariamente econômica) dentro do ambiente. Enfim, a jovem Herszenhut e seu companheiro Jefferson Oliveira (Don), oferecem um olhar diferente. Os moradores do complexo não são descritos através de seus sofrimentos. A lente, em vez disso, prefere convidar-nos a perceber o valor simbólico desse espaço dentro da comunidade. Não perde tempo falando de exclusão econômica. Fala de subjetividade. E isso não há bolso que compre ou explique. Já dizia uma das primeiras falas do filme: “se eu ganhasse na loteria, faria uma casa blindada aqui, mas não me mudaria”. A questão de pertencimento, de identificação com o lugar – tão apontada por nomes como o do professor Milton Santos, se mostra para além de seus livros, ocorrendo diante da câmera. Para quem insistir em recortes econômicos para falar do Complexo do Alemão, ele também está presente no filme. Do seu jeito, nas entrelinhas de diversos planos para quem quiser ver. Mas não é isso que torna o filme de Débora e Don especial. Percebo, por exemplo, que quando a câmera visita os olheiros do tráfico, as perguntas que me estimulam não são outras se não: “E quando cai aquela chuva torrencial? Como que esses meninos fazem para executar o trabalho deles?” Nessa hora, percebo, já fomos tragados pelo recorte de DEPOIS ROLA O MOCOTÓ. As perguntas de praxe são substituídas por outras. É a cultura da laje que nos interessa agora.
Alias, esse projeto – assim como todo o projeto DOCTV- me faz lembrar aquilo que de mais bonito existe em fazer documentários: conhecer o outro. Não raro, terminamos de assistir um bom documentário e percebemos que temos muito mais perguntas do que respostas. Isso é um ótimo sinal. Mostra que a experiência nos atiçou a curiosidade em relação a alteridade. Uma curiosidade sincera, que parece não se saciar com os preconceitos que carregamos. Nada mais feliz para um documentarista (falo por mim, e espero ter pares nisso) do que saber que seu filme estimula não apenas elogios mas também questões. Ainda não encontrei Débora depois de ver seu filme. Mas certamente vou cobri-la de perguntas.
Se o documentário não tem pontos fracos? Sim, alguns. Acredito que a maioria dos detalhes que me incomodaram estejam de alguma forma relacionados com a metragem exigida pelo edital. Cinqüenta e poucos minutos é o tempo que a TV pede. Mas cada tema pede um tempo que é somente seu. Assim, percebemos em alguns momentos que certos planos parecem não dialogarem com o restante do filme. Sobram no documentário. Talvez, se fosse um espaço de criação mais livre, o documentário fosse um pouco mais enxuto. Menor e mais direto ao ponto. Para além desse ponto, pouco a ponderar. Os futuros expectadores ficarão impressionados com a beleza de alguns planos. Noções de composição de quadro incríveis e complicadas de serem aplicadas em um cinema do espontâneo (fico aqui receoso de creditar o incrível Lula Carvalho quando já sei que a maioria das imagens deve ser credita ao próprio Jefferson Oliveira, Don). Os futuros expectadores também devem ficar particularmente atentos ao som. Sim, essa parte tão pouco discutida do cinema. Seu uso é alguma coisa assim, notável. Há vários racord sonoros (para usar o termo que fico popular no uso da montagem). E ainda podemos ter boas noções de deslocamento espacial do som. Usado sem o exagero da vanguarda pela vanguarda, o uso diferenciado da banda sonora soma algum grau de ousadia estética. O recorte sobre o tema já seria uma marca diferenciada na construção do conteúdo.
Aproveito para rasgar um pouco mais de seda do projeto DOCTV. Nenhum documentário é imparcial, não será meu texto que tentará ser. Mas documentários podem ser honestos, e espero que meus textos também o sejam. Sempre que penso no DOCTV, acabo associando a famosa Caravana Farkas – que não tinha esse nome quando ocorreu. Thomas Farkas, famoso fotografo e produtor, saiu numa saga cinematográfica pelo Brasil de principios da década de 1960. Produziu diversos filmes (são vários diretores) que tinham como objetivo documentar o Brasil e mostrá-lo para ele mesmo. Naquela época, talvez, houvesse ainda mais Brasis do que hoje. Mas também havia muito mais dificuldade em documentá-lo e distribui-lo. Hoje, a caravana Farkas é muito mais um mito para os iniciados do que um acontecimento que conseguiu atingir grupos sociais diversos. O DOCTV, ainda que careça de uma política de distribuição melhor, está anos-luz a frente da distribuição que Farkas conseguiu. Mas ainda há o que melhorar. Anos atrás, cheguei a escutar um colega de profoissão chamando-a de Coluna Farkas – a comparação com o movimento de Luiz Carlos Prestes é até interessante, mas gera muitos pontos de discordância para ser defendida por mim. O DOCTV é isso, ou quer ser honestamente isso: O Brasil para os brasileiros. A oportunidade de conhecermos um mundo de pares tão diferentes. Conhecermos de verdade. Ou pelo menos, com menos estereótipos. Perceber que no nordeste não existe apenas um sotaque. Que no Norte não há apenas floresta, índios e açaí. Que o centro-oeste não se resume aos políticos que vivem em Brasília e ao cerrado. E que as favelas cariocas têm muito mais do que apenas violência, narcotráfico e diferença social. Que viva a pluralidade do olhar.