PRÓLOGO:

A laje, personagem de tantas piadas para uns e endereço de tantos eventos para outros, no documentário “Depois Rola o Mocotó” é a nossa protagonista. Unanimidade em 99% das casas das favelas cariocas a partir da década de 90, hoje, é ícone de uma cultura das periferias das capitais de todo o Brasil.

As favelas parecem brotar do solo das metrópoles do país, como flores que nascem do cimento, insistindo em nascer nos espaços onde aparentemente já não se pode. E, estranhamente, poucas vezes nos perguntamos: Como aquela casa foi parar ali? Como essas casas são construídas? Afinal, quem são esses grandes empreiteiros da cidade, que constroem casas e batem lajes favelas afora, aparentemente à velocidade da luz? Quem são os donos dessas casas e como se organizam para conseguirem mão de obra para a construção?

DEPOIS ROLA O MOCOTÓ, POR GABRIEL MARINHO


A falta de TV a cabo tem suas conseqüências. O projeto DOCTV, do qual já participei como monitor em sua segunda edição – tive a honra de auxiliar os trabalhos de Mauricio Capoville – é quase sempre formado por filmes que não ultrapassam o pequeno circuito televisivo que o edital prevê. Algumas mudanças estavam sendo previstas, pelo que sei. Mas ainda que apóie muito o projeto, continuo só tendo acesso a seus resultados através de coincidências e sortes. Encontros sem pretensão mas de grande sucesso, como que aconteceu comigo e com Débora Herszenhut.Uma nova diretora na área.

O documentário de 50 e tantos minutos traça um perfil do cotidiano de alguns moradores do complexo do alemão, Rio de Janeiro, tendo como recorte o espaço de convivência da laje. Isso mesmo, o espaço de cima das casas. Olhar interessante. Incomum. Daqueles que passaria desapercebido por muitos que se arriscassem a pensar a respeito de um lugar tão estigmatizado. Pela sensibilidade diferenciada, já chama a atenção. Em um primeiro momento, parecemos estar diante de mais um filme da safra “violência e diferença social nas favelas brasileiras”. Para completar a falta de originalidade, um expectador de véspera (aqueles que já tem opinião antes de ver o filme) ainda completaria: “e não é qualquer favela, para variar é uma favela do Rio de Janeiro”. De fato, esperamos um olhar viciado. O olhar de sempre. Mas onde estão os traficantes? As pessoas reclamando da falta de assistência do estado? Onde estão os personagens e as situações de sempre? Demoramos um pouco a entender que esse não o argumento. Sua câmera não está virada para tudo aquilo que já foi exaustivamente documentado. Está virada para um espaço doméstico que parece ganhar um sentido especial naquele lugar: a laje. E hei que no fim, um filme que parecia repetir os temas de sempre, já ditos tantas vezes em outros títulos, nos traz algo de novo. Mas o que há de especial na laje?

A laje é um espaço de convivência e de acontecimentos. É onde meninos soltam pipas, onde cultos religiosos são realizados de improviso, onde festas e churrascos são feitos. É um símbolo de ascensão social (não necessariamente econômica) dentro do ambiente. Enfim, a jovem Herszenhut e seu companheiro Jefferson Oliveira (Don), oferecem um olhar diferente. Os moradores do complexo não são descritos através de seus sofrimentos. A lente, em vez disso, prefere convidar-nos a perceber o valor simbólico desse espaço dentro da comunidade. Não perde tempo falando de exclusão econômica. Fala de subjetividade. E isso não há bolso que compre ou explique. Já dizia uma das primeiras falas do filme: “se eu ganhasse na loteria, faria uma casa blindada aqui, mas não me mudaria”. A questão de pertencimento, de identificação com o lugar – tão apontada por nomes como o do professor Milton Santos, se mostra para além de seus livros, ocorrendo diante da câmera. Para quem insistir em recortes econômicos para falar do Complexo do Alemão, ele também está presente no filme. Do seu jeito, nas entrelinhas de diversos planos para quem quiser ver. Mas não é isso que torna o filme de Débora e Don especial. Percebo, por exemplo, que quando a câmera visita os olheiros do tráfico, as perguntas que me estimulam não são outras se não: “E quando cai aquela chuva torrencial? Como que esses meninos fazem para executar o trabalho deles?” Nessa hora, percebo, já fomos tragados pelo recorte de DEPOIS ROLA O MOCOTÓ. As perguntas de praxe são substituídas por outras. É a cultura da laje que nos interessa agora.

Alias, esse projeto – assim como todo o projeto DOCTV- me faz lembrar aquilo que de mais bonito existe em fazer documentários: conhecer o outro. Não raro, terminamos de assistir um bom documentário e percebemos que temos muito mais perguntas do que respostas. Isso é um ótimo sinal. Mostra que a experiência nos atiçou a curiosidade em relação a alteridade. Uma curiosidade sincera, que parece não se saciar com os preconceitos que carregamos. Nada mais feliz para um documentarista (falo por mim, e espero ter pares nisso) do que saber que seu filme estimula não apenas elogios mas também questões. Ainda não encontrei Débora depois de ver seu filme. Mas certamente vou cobri-la de perguntas.

Se o documentário não tem pontos fracos? Sim, alguns. Acredito que a maioria dos detalhes que me incomodaram estejam de alguma forma relacionados com a metragem exigida pelo edital. Cinqüenta e poucos minutos é o tempo que a TV pede. Mas cada tema pede um tempo que é somente seu. Assim, percebemos em alguns momentos que certos planos parecem não dialogarem com o restante do filme. Sobram no documentário. Talvez, se fosse um espaço de criação mais livre, o documentário fosse um pouco mais enxuto. Menor e mais direto ao ponto. Para além desse ponto, pouco a ponderar. Os futuros expectadores ficarão impressionados com a beleza de alguns planos. Noções de composição de quadro incríveis e complicadas de serem aplicadas em um cinema do espontâneo (fico aqui receoso de creditar o incrível Lula Carvalho quando já sei que a maioria das imagens deve ser credita ao próprio Jefferson Oliveira, Don). Os futuros expectadores também devem ficar particularmente atentos ao som. Sim, essa parte tão pouco discutida do cinema. Seu uso é alguma coisa assim, notável. Há vários racord sonoros (para usar o termo que fico popular no uso da montagem). E ainda podemos ter boas noções de deslocamento espacial do som. Usado sem o exagero da vanguarda pela vanguarda, o uso diferenciado da banda sonora soma algum grau de ousadia estética. O recorte sobre o tema já seria uma marca diferenciada na construção do conteúdo.

Aproveito para rasgar um pouco mais de seda do projeto DOCTV. Nenhum documentário é imparcial, não será meu texto que tentará ser. Mas documentários podem ser honestos, e espero que meus textos também o sejam. Sempre que penso no DOCTV, acabo associando a famosa Caravana Farkas – que não tinha esse nome quando ocorreu. Thomas Farkas, famoso fotografo e produtor, saiu numa saga cinematográfica pelo Brasil de principios da década de 1960. Produziu diversos filmes (são vários diretores) que tinham como objetivo documentar o Brasil e mostrá-lo para ele mesmo. Naquela época, talvez, houvesse ainda mais Brasis do que hoje. Mas também havia muito mais dificuldade em documentá-lo e distribui-lo. Hoje, a caravana Farkas é muito mais um mito para os iniciados do que um acontecimento que conseguiu atingir grupos sociais diversos. O DOCTV, ainda que careça de uma política de distribuição melhor, está anos-luz a frente da distribuição que Farkas conseguiu. Mas ainda há o que melhorar. Anos atrás, cheguei a escutar um colega de profoissão chamando-a de Coluna Farkas – a comparação com o movimento de Luiz Carlos Prestes é até interessante, mas gera muitos pontos de discordância para ser defendida por mim. O DOCTV é isso, ou quer ser honestamente isso: O Brasil para os brasileiros. A oportunidade de conhecermos um mundo de pares tão diferentes. Conhecermos de verdade. Ou pelo menos, com menos estereótipos. Perceber que no nordeste não existe apenas um sotaque. Que no Norte não há apenas floresta, índios e açaí. Que o centro-oeste não se resume aos políticos que vivem em Brasília e ao cerrado. E que as favelas cariocas têm muito mais do que apenas violência, narcotráfico e diferença social. Que viva a pluralidade do olhar.


O BRASIL DO ÚLTIMO ANDAR

Subir é verbo gordo, recheado de muitos sentidos. Pode significar ascensão física, social ou espiritual. Sobe-se para a serra, sobe-se na vida, sobe-se para sair do plano corriqueiro do mundo. Sobem as bolsas, os preços e as marés, assim como elevam-se a voz dos cantores e o espírito dos místicos. No jargão da internet, subir um texto é publicar, trazer à luz. No alto estão a claridade, a aspiração, a conquista e o privilégio.
Fui levado a pensar essas coisas a propósito de dois filmes da Mostra Internacional do Filme Etnográfico. Para seus personagens, a prerrogativa de morar no alto assume um leque curioso de significados. Em Um Lugar ao Sol, oito pessoas/famílias de posses descrevem o que é viver em coberturas do Rio, São Paulo e Recife. Em Depois Rola o Mocotó, número aproximado de personagens exemplificam as muitas funções das lajes numa comunidade pobre como o Complexo do Alemão, no Rio.


Depois Rola o Mocotó “Quem tem laje tem tudo”, diz Dona Vera, que usa uma laje emprestada para lavar e pendurar suas roupas. “Daqui da cobertura, podemos falar com Deus mais facilmente”, informa o morador de uma cobertura carioca. O conforto e a sensação de comunhão com a natureza (o lugar ao sol) são traços comuns aos dois grupos, mas, de resto, a noção de privilégio é vista de modo bem diferente em cada um dos contextos.

No bairro popular, o terraço sobre as casas é local de convivência, já a partir dos mutirões para “bater a laje”, seguidos do banquete de mocotó oferecido pelos donos da casa. O DOC-TV de Debora Herszenhut e Jefferson Oliveira (Don) – este um morador do Complexo – desvenda os diversos usos coletivos da laje: festas, banhos de piscina, cultos religiosos, assistência de jogos na TV, empinação de pipas, vigilância da área por “fogueteiros” do tráfico. Ao mesmo tempo que é propriedade privada, resultado de esforço e conquista, a laje é também um espaço de congraçamento e solidariedade.

Já as coberturas de Um Lugar ao Sol são quase sempre índices de privacidade (mais que isso, isolamento), autosatisfação, esnobismo e arrogância social. Um dos personagens elogia a direção por finalmente fazer um documentário sobre “uma coisa positiva”. Não intuía o quadro geral que o filme acabaria por descortinar: o quadro de uma elite dominada pelo medo e o complexo de superioridade.

É claro que nem todo rico é capaz de provocar repugnância e nem todo pobre é anjo de fraternidade. Um Lugar ao Sol tem personagens mais nuançados, assim como Depois Rola o Mocotó deixa entrever frestas de violência e vaidade. Mas é interessante que esses dois filmes tratem de assunto semelhante em classes sociais bem distintas e apontem o predomínio de sentimentos tão díspares. São duas faces de um desejo de ver as coisas de cima.

Pode-se argumentar que os moradores da favela são vistos com simpatia, enquanto os das coberturas são encarados com uma curiosidade ardilosa. As coberturas, para Gabriel Mascaro, foram um caminho (um dispositivo) para chegar ao pensamento de um estamento social pouco visitado pelos docs. Teria o diretor “traído” seus personagens ao estimular neles a demagogia e o preconceito? Deve-se ter com os ricos a mesma ética que se costuma ter ao filmar os pobres, ou seja, protegê-los de suas próprias palavras? São questões que vêm à cabeça depois de vermos o filme. Há mesmo um momento em que uma senhora parece cair em si a respeito do intuito da entrevista, pede para interrompê-la e sai da sala para não mais voltar.

Ambos os filmes nos confrontam com o desejo de ascensão numa sociedade marcada por desigualdades. Numa sequência de Um Lugar ao Sol, as duas classes se encontram. É quando uma francesa que mora numa cobertura do Rio conta que descobriu o Brasil através do filme Orfeu Negro, de Marcel Camus. Então as cenas do alto do morro, da favela idealizada por Marcel Camus, invadem o filme dos ricos.

Só falta dizer que ambos os docs são de primeira qualidade. Exploram seus temas esteticamente e captam em profundidade sua essência etnográfica. Deviam passar juntos num programa sobre o que seja “subir” no Brasil.

Por Carlos Alberto de Mattos
Publicado: 01/12/2009
Em:
...rastros de carmattos

TEM MOCOTÓ NA MOSTRA INTERNACIONAL DO FILME ETNOGRÁFICO


Na próxima segunda feira, 30 de Novembro vai rolar o Mocotó na Mostra Internacional do Filme Etnográfico as 18h no cinema do Museu da República - Rua do Catete, 153.
Este é um belissimo festival que já está na sua 14ª edição. Serão 100 filmes exibidos entre os dias 26 de Novembro e 04 de Dezembro, no Museu da República, Museu do Folclore, Centro Cultural da Caixa e SESC Flamengo.
Entre as programaçoes imperdiveis, além do Mocotó é claro, está a oficina com Vincent Carelli, coordenador e idealizador do projeto Video nas Aldeias
A programçao é toda gratuita e está completa no site.

MOCOTÓ NO MOLA






















Na próxima quarta feira, 28 de Outubro, tem a abertura do MOLA - Mostra Livre de Artes, que acontece anualmente no circo voador, no Rio.
O mola é um evento muito bacana, com filmes performances, artes plásticas e vários shows muito bons! Ou seja, evento imperdivel!
O mocotó será exibido no dia 28 às 21h e será seguido do incrivel mocotó da nossa querida D. Salete!

CONFIRA A PROGRAMAÇÃO COMPLETA NO SITE DO CIRCO

ESTRÉIA NA TV

ESTRÉIA DO DOCUMENTÁRIO NAS TVS PÚBLICAS DE TODO O BRASIL!



CONFIRA A GRADE DE PROGRAMAÇÃO PARA TODO O BRASIL
entre os dias 13 e 20 de setembro de 2009

DEPOIS ROLA O MOCOTÓ NO COMPLEXO


No próximo dia 12 de julho será exibido no Complexo do Alemão, na quadra da Canitá, o Documentário “Depois rola o Mocotó”, filmado integralmente sobre as lajes do complexo, o filme acompanha o percurso de duas famílias na construção das lajes de suas casas, enquanto faz um panorama sobre as muitas lajes das favelas, com seus eventos realizados, e os sonhos depositados neste espaço poético e filosófico que abriga um pouco de toda a cultura das favelas cariocas.
Embalando e temperando este caldo, o evento gratuito com início marcado para as 18h, terá ainda uma festa/show da equipe de som do DigitalDubs, primeira equipe de som especializada em reggae no Rio de Janeiro, e autora da trilha sonora do documentário e um grande mocotó servido a todos os convidados.